quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

2000inove: retrospectiva do ano que não inovou

Por João Paulo da Silva

Esse foi um ano daqueles. Daqueles de dar dor de cabeça, daqueles de dar desgosto e raiva de saber que o próximo pode ser muito pior. A julgar pelos fatos de 2009, não há nada que aponte – pelo menos até agora – para qualquer melhora, mínima que seja. Até o salário mínimo, que vai para R$ 510 agora em janeiro, vai continuar mínimo. Caso você não lembre o que aconteceu de mais importante em 2009, não precisa ficar preocupado. Fiz um resumo, mês a mês, dos principais acontecimentos do ano. Recordar é viver. Haja paciência!

Janeiro – Barack Obama toma posse como o primeiro presidente negro da história dos EUA. E é, também, o primeiro negro a ficar branco politicamente em tão pouco tempo. O negão já tá a cara do Bush. Entra em vigor o novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa, uma espécie de reforma neoliberal da gramática. Passaram a tesoura no trema e em outros acentos. Agora ideia não tem mais o agudo. Péssima ideia por sinal. Nos estados do RS, MG, ES, RJ e SP as chuvas deixam milhares desabrigados e causam dezenas de mortes.

Fevereiro – O PMDB passa a controlar o Congresso, elegendo José Sarney para presidir o Senado e Michel Temer a Câmara dos Deputados. Era o prenúncio do caos. A produção industrial cai 12,4% em relação a novembro de 2008 e 14,5% em relação a dezembro de 2008, as maiores quedas desde 1991. O caos bate à porta e o índice de aprovação de Lula bate recorde de 84%. A Embraer decide demitir cerca de 20% do seu efetivo de 21.362 empregados. O caos se instala no sofá. Vítima de enfarte, morre na Bahia o ex-deputado Sérgio Naya. Enfim, uma boa notícia.

Março – O anúncio da queda de 3,6% no PIB brasileiro do último trimestre de 2008 mostra a “marolinha” de Lula. A crise existe e é grande. O caos abre a geladeira do povo. Governo prorroga por mais três meses a redução de IPI para carros e José Sarney começa a dar explicações sobre Agaciel Maia e os Atos Secretos. Após o aborto da menina de nove anos que engravidou do padrasto e corria risco de morte, o Arcebispo nanico de Olinda e Recife excomunga os médicos e a mãe da garota. Dieese anuncia que a crise financeira internacional eliminou aproximadamente 750 mil empregos formais no País entre novembro e fevereiro. O caos até já deita na cama com os trabalhadores brasileiros.

Abril – Confirmada a primeira morte por Gripe Suína no México. No Brasil, enquanto os casos da gripe A se confirmam e crescem, o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, afirma: "Fiquem tranquilos. A situação está sob controle.". Aí é que bate o desespero. Na reunião do G-20, Obama diz que Lula é “o cara”. E a gente fica de cara. A Argentina perde por 6 a 1 para a Bolívia, em La Paz, pelas Eliminatórias da Copa. Em meio ao caos, um fugaz momento de felicidade para os brasileiros. Que pena, hermanos.

Maio – Perdigão e Sadia anunciam fusão e criam a Brasil Foods. O Teatro do Oprimido perde seu criador. Morre de leucemia Augusto Boal, aos 78 anos. Flamengo contrata Adriano, o Imperador. É a retomada do caminho ao título. STF livra Genoino, Delúbio e Marcos Valério de acusação de gestão fraudulenta. IBGE informa que o índice de desemprego apurado nas seis principais regiões metropolitanas do País chegou a 8,9%, no maior nível registrado para o mês desde abril de 2007. Nesse momento, o caos já Foods a gente.

Junho – Morre Michael Jackson, o Rei do Pop, vítima de uma parada cardíaca. É a prova de que ele era humano. A descoberta de 300 atos secretos coloca Sarney contra a parede, mas ninguém atira. Não para acertar, claro. Sarney diz que a crise não é dele, é do Senado e cria uma comissão para investigar os atos secretos (vê se pode?!). STF detona diploma para jornalistas (Morte ao Gilmar Mendes!). Presidente de Honduras é deposto por golpe de Estado. GM pede concordata e governo dos EUA segura 60% da empresa. Capitalismo balança, mas não cai. E o caos vendo TV na sala.

Julho – Romário abre o jogo e diz que não matou Michael Jackson nem trouxe a gripe suína para o Brasil. Só está falido e com problemas na Justiça. Parentes fazem funeral de Michael Jackson virar show, reunindo 20 mil pessoas. Todo mundo cantando ao redor do caixão. Saravá!

Agosto – O jamaicano Usain Bolt prova mais uma vez que não é deste planeta. No Mundial de Berlim, ele correu 100 metros em 9s58, quebrando o próprio recorde de 9s69, feito nas Olimpíadas de Pequim. O bispo Edir Macedo e mais nove pessoas, ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus, se tornam réus em processo por lavagem de dinheiro, que já subiu aos céus. Lula lança marco regulatório do pré-sal e entrega petróleo brasileiro a multinacionais. Todas as denúncias e representações contra o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AC), são arquivadas no Conselho de Ética. O caos mexe na dispensa, já se sente de casa.

Setembro – 70 dias depois de sua morte, Michael Jackson é sepultado (Porra! Finalmente, né?!). Mesmo sem nunca ter publicado um livro, o ex-presidente e senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL) é eleito membro da Academia Alagoana de Letras, provando vocês sabem o quê. Comentando o crescimento de 1,9% do PIB no 2º trimestre em comparação com o 1º, Lula diz que o Brasil estava preparado porque “o povo fez sacrifícios”. Meu bolso que o diga. O caos toma sol na laje.

Outubro – Morre a Voz da América Latina, Mercedes Sosa, em Buenos Aires aos 74 anos. Rio de Janeiro se torna sede da Olimpíada de 2016, para a felicidade das empreiteiras e da corrupção. Em São Bernardo do Campo, a estudante de Turismo Geysa Arruda é assediada por alunos da Uniban por usar um vestido curto, registrando o retorno da Idade Média. Para economizar energia, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, pede ao povo que reduza a duração dos banhos para três minutos. Agora os venezuelanos só lavam as orelhas. Agindo de forma chiquérrima, Brasil oficializa empréstimo de US$ 10 bilhões para o FMI. E a gente se Foods de novo. Mantendo duas guerras contra povos oprimidos, Barack Obama recebe o Prêmio Nobel da Paz. Até ele se surpreende. A essa altura do campeonato, o caos já dá risada da nossa cara.

Novembro – Apagão deixa mais da metade do País sem luz. O blecaute atingiu 18 estados brasileiros por cerca de quatro horas. Segundo o governo, as causas do problema foram os raios, ventos e chuvas muito fortes na região de Itaberá, no interior de São Paulo. O governo também investiga a possibilidade de sabotagem, talvez pelo Coelhinho da Páscoa. Guido Mantega anuncia que com a redução do IPI o total de desonerações chega a R$ 25 bilhões. Ou seja, os empresários não pagam impostos e nós se Foods outra vez. Em São Paulo, morre aos 63 anos o ex-prefeito Celso Pitta. Pelo menos uma boa notícia.

Dezembro – Vítima de enfarte, morre aos 69 anos o famoso locutor Lombardi, que ninguém nunca tinha visto a cara antes de ele morrer. O Flamengo conquista seu sexto título do campeonato brasileiro, as massas entram em êxtase e o Brasil não dorme por uma semana. O Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama, anuncia o envio de mais 30 mil soldados ao Afeganistão. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-15), ocorrida em Copenhague (Dinamarca), é um fracasso. As potências industriais não querem reduzir seus lucros e não vão parar de jogar CO2 na atmosfera. As coisas esquentarão ainda mais, o clima mudará pra cacete e o planeta inteiro vai se Foods, assim como a gente. Até o caos abandona o barco.

Bom 2010 pra todo mundo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Recado do Cronista

Olá, caros leitores e leitoras!

Em primeiro lugar, quero pedir desculpas pelo sumiço nas últimas semanas. O mês de dezembro foi de atribulações para esta "minha nada mole vida". Como todos sabem (até parece que sou uma celebridade), no meio do ano me mudei para Natal/RN e, desde então, tenho tentado me organizar profissionalmente para conseguir o meu "lar doce lar". Bom, o fato é que só agora, em dezembro, pude alugar um cantinho e me dedicar a arrumar a casa em que vou morar pelo menos por um ano (é o que está no contrato). Por essa razão, estive um pouco ausente.
Mas não se desesperem! A partir de amanhã as coisas voltam ao normal. E para compensar o sumiço, vou postar duas novas crônicas. Uma nesta quarta e a outra na quinta. Ambas sobre as frescuras de fim de ano. Além, é claro, da retrospectiva de 2009 e das perspectivas para 2010 (aiaiaiai!). Ah, uma novidade! Em 2010, o blog As Crônicas do João volta a ter postagens semanais aos domingos, a contar do primeiro domingo de janeiro.
Por fim, quero agradecer a todos e todas que passaram pelo blog durante o ano de 2009 e desejar um forte abraço aos 62 pacientes seguidores desta página, que me dão ânimo para continuar escrevendo as besteiras que me vêm na telha.
Para vocês, o meu feliz alguma coisa.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O novo amanhecer

Por João Paulo da Silva

Eu amanheceria com os primeiros raios do sol afagando meu rosto. Chegaria bem cedo à padaria, pegaria os pães ainda quentinhos e prepararia com eles um belo café da manhã. Levaria as frutas, as torradas, a manteiga, o suco de laranja e a geléia de morango até a cama para minha mulher. Sim, eu teria uma mulher para amar. E teria um filho também. Minha mulher teria todas as características de uma rosa, exceto os espinhos. Meu filho pareceria comigo, mas o importante é que teria saúde. Após o café, ela me agradeceria com um beijo sabor laranja e me lançaria um “bom-dia” lambuzado de geléia de morango, amor e carinho. Eu levantaria da cama feliz da vida e entraria no banheiro para tomar um bom banho, cantando aquela velha canção que anos antes havia selado nosso amor.
“Quando a gente conversa, contando casos, besteiras. Tanta coisa em comum, deixando escapar segredos”.

Ela entraria no banho também, me chamaria de bobo e nós faríamos amor banhados pela água fria do chuveiro e pelos primeiros raios mornos da manhã.
Antes de sair para trabalhar, eu passaria no quarto do meu filho e diria:
- Vamos lá, garotão! Tá na hora de ir pro colégio.
Ele relutaria por alguns instantes, mas logo se levantaria animado com a idéia de que iria ao colégio aprender coisas novas. Aos oito anos ele já leria Shakespeare, Drummond e García Lorca. Também veria Chaplin e Woody Allen. Eu teria tempo suficiente para levá-lo ao colégio, pois os homens não seriam mais escravos do relógio. Trabalhariam de chinelos, bermuda e camiseta. Nada de ternos e gravatas. Eu trabalharia cantando a vida em verso e prosa, recriando o mundo a cada milésimo de segundo, exatamente como agora.

Quando chegássemos ao colégio, eu seguraria meu filho pelos ombros e, olhando bem em seus olhos, diria:
- Cuide-se, garoto. Seja um bom menino, do contrário não vai ter sorvete de sobremesa. Papai ama você. Tchau.
Depois de me despedir do infante com um beijo na testa, eu partiria para o trabalho. Iria a pé mesmo. É que daria gosto caminhar pelas ruas. Não haveria assaltos, pois não seria necessário roubar para comer. Não haveria favelas, e sim lares. Não encontraríamos mendigos nas ruas, eles não estariam nelas. Estariam amando suas mulheres, educando filhos, construindo vidas. Seriam homens. Não haveria crianças nos sinais, elas estariam nas escolas. Não haveria classes, nem partidos, nem guerras, nem fome, nem miséria. A exploração e a desigualdade não existiriam, a propriedade seria abolida. Teríamos horizontes, não fronteiras. As pessoas não cuspiriam insultos; declamariam flores. Não existiria tempo para as lágrimas da dor. Não marcaríamos o tempo da solidão, ele não existiria.

Eu chegaria ao trabalho cumprimentando calorosamente meus companheiros. Seriam companheiros de sonhos, companheiros de vida. Seriam seres humanos. Trabalharíamos por prazer, o suficiente para sermos felizes. Construiríamos a vida da mesma forma que um poeta constrói amores. Depois do trabalho, eu iria correndo para casa. Não por estar atrasado para algum compromisso, e sim porque minha família estaria me esperando para o almoço. Da esquina, eu sentiria o cheiro bom do feijão. Entraria sorridente em casa e me sentaria rapidamente à mesa. Teríamos uma mesa farta, assim como todas as outras pessoas do mundo. Após nos entupirmos de sobremesa (sorvete, lembra?), iríamos os três tirar um cochilo. Sabe como é, né? É bom dormir de barriga cheia.

Acordaríamos nos limites que separam a preguiça da disposição, mas satisfeitos. Meu filho, sabido como todas as crianças, já teria adiantado os exercícios do colégio e estaria doidinho para ir jogar uma bolinha na rua da frente. Não sem antes ler um pouco de Neruda, é claro. Sairíamos para o campinho da rua da frente dispostos a marcar muitos gols, e marcaríamos. Sabe como é, né? Seríamos bons de bola. Jogaríamos até que não pudéssemos mais ver os próprios pés de tanta sujeira que haveria neles. Quando voltássemos para casa, suados como uns porquinhos, minha mulher nos empurraria à força para o banheiro, dizendo ser nossa imundice motivo incontestável para a imposição.

Já de banho tomado e cheirosos, partiríamos juntos para um programa de fim de tarde. Caminharíamos animados pela orla. A brevidade da vida não seria problema, a beleza simples de seus momentos faria a humanidade feliz o suficiente para abrir um sorriso. Ficaríamos hipnotizados com o ir e vir das ondas, a brisa do mar beijaria nossos rostos, o pôr do sol celebraria o fim da solidão humana. Perceberíamos a harmonia do mundo todas as vezes que abríssemos a janela do quarto, que pegássemos um ônibus, que déssemos um bom-dia. Ao lado de minha mulher e de meu filho, eu perceberia com clareza real a emancipação da condição do homem enquanto bicho amante e ser vivo pensador. As vidas se cruzariam constantemente. Todo homem reconheceria a si mesmo em outro homem. Nenhum homem seria estranho a outro homem. Um chinês cumprimentaria um brasileiro, que cumprimentaria um russo, que por sua vez cumprimentaria um angolano. Seria sempre o mesmo cumprimento: “Olá, camarada!”. Estaríamos livres dos grilhões do nosso próprio egoísmo e a humanidade seria uma mulher de cabelos vermelhos com flores nas mãos.

Voltaríamos para casa mais leves do que as nuvens, com um carnaval nos corações e já pensando como celebraríamos a vida amanhã. Cinemas, teatros, bibliotecas... À mesa do jantar, comemoraríamos o nascimento de um novo amanhecer. O amor e a liberdade seriam sempre os pratos principais do cardápio. Beberíamos, comeríamos, dançaríamos, sorriríamos como nunca em nossas vidas. Por baixo da mesa, eu esfregaria meu pé no de minha mulher, num convite ousado para mais tarde. Após o jantar, eu passaria no quarto de meu filho para verificar-lhe o sono. Dormiria tão tranqüilamente que eu poderia até ouvir os ruídos de seu coração e de seus sonhos. Beijaria sua testa e sairia na ponta dos pés. Feito isso, partiria correndo para meu quarto. Iria me empenhar de corpo e alma – sobretudo corpo! – na mais prazerosa atividade física da natureza humana, através da qual estendemos nossa existência.

E no dia seguinte, a vida se repetiria.
Bem é verdade que o mundo pareceria perfeito demais, mas eu nunca ouvi falar de alguém que tivesse tido um sonho imperfeito.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A caneta de cinco cores

Por João Paulo da Silva

Alfredo lia o jornal quando o filho de seis anos se aproximou com uma caneta na mão e disse:
- Pai, preciso de outra caneta. Esta não funciona mais.
- Amanhã eu compro, filho. – respondeu sem tirar os olhos do jornal.
- Mas tem que ser igual a do Maurício.
- Por quê?
- Porque ela é grande, bonita e tem cinco cores.
- Cinco cores?! – assustou-se.
- Isso mesmo, pai. Cinco cores.
Alfredo fechou o jornal, coçou a barba, olhou tristemente para o menino e falou:
- Desculpe, filho. Deve ser muito cara. Eu não posso comprar.
- Por quê?
- Porque nós somos pobres.
- Mas só nós?
- Não, filho. Um montão de gente também é.
- E é ruim ser pobre?
- É, filho.
- Por que é que o pai do Maurício pode comprar a caneta?
- Ele deve ser rico.
- Existe muita gente rica?
- Acho que sim, filho.
- Mais do que pobres?
- Com certeza que não.
- E é bom ser rico?
- É, filho.
O garoto calou-se por um instante, parecia estar submerso nos próprios pensamentos. Olhou intrigado para o pai e perguntou:
- Por que é que as coisas são assim?
- Assim, como?
- Uns podem ter. Outros, não. Uns são ricos e outros são pobres. Por quê?
Alfredo pensou, coçou novamente a barba e respondeu:
- São as regras, meu filho.
- Regras? – estranhou o garoto.
- Sim. O mundo tem suas regras. São elas que dizem o que a gente pode ou não fazer.
- Também são elas que dizem quem é pobre e quem é rico? – quis saber o menino.
Alfredo balançou a cabeça numa afirmativa.
- Não gosto das regras, pai.
- Eu também não, filho. Eu também não.
Fez-se um curto silêncio e, então, o menino disse:
- Sabe o que é que eu acho, pai?
- O quê?
- Que o bom mesmo seria que todo mundo pudesse ter canetas de cinco cores.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

2012

Por João Paulo da Silva

O mundo já tem data para acabar. Pois é. De novo. Agora, nosso encontro “definitivo” com o apocalipse está marcado para o dia 21 de dezembro de 2012. Entretanto, agendar o fim do mundo nunca foi o forte da raça humana. Entre loucuras religiosas e mirabolantes teses cientificas, inúmeras profecias já foram traçadas. Nenhuma delas, porém, vingou. Só que desta vez parece que a coisa é um pouco diferente.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Jurassic Park

Por João Paulo da Silva

Parece que, por mais que o tempo avance, ainda existem situações e setores sociais que insistem em nos puxar para o buraco, para o retrocesso. Algo como um retorno a épocas remotas, medievais, jurássicas até. Acho, inclusive, que há pessoas que adorariam voltar para dentro das cavernas. O caso da estudante de Turismo da Uniban, Geisy Arruda, agredida por usar um vestido curto dentro da universidade, é um daqueles exemplos que nos faz reviver os tempos do “uga-buga”. Mas não é só isso. Lamentavelmente, a barbárie de São Bernardo do Campo revelou – da pior forma possível – que a violência machista segue nos perseguindo e perturbando, como uma espécie de sombra do grotesco.

Quando vi, pela primeira vez, as cenas que mostram a estudante sendo assediada por uma multidão enlouquecida, juro que pensei estar vendo o Animal Planet, da Discovery Channel. Sim, porque não eram pessoas naquele vídeo. Eram animais, gritando, uivando, subindo pelas paredes. Os diversos e medonhos xingamentos, recebidos pela moça, mostraram quanto atraso nós ainda temos nesta sociedade. E o pior: demonstraram, também, que o machismo não é um problema dos séculos passados, já que esta mesma sociedade não pode viver sem transformar mulheres em objetos consumíveis e descartáveis.

Mas, se a selvageria daqueles estudantes já era um ato de violência inconcebível, muito pior foi a legitimidade que a direção da universidade deu àquelas ações bestiais, quando expulsou a vítima do caso. A decisão da Uniban se iguala ao crime de culpar uma mulher estuprada pela violência sofrida, alegando que suas roupas teriam provocado os instintos do estuprador. Uma agressão imensurável. E mesmo com a universidade revogando a expulsão da estudante, por conta das pressões recebidas, o mal já está feito. Cabe, agora, uma reflexão sobre o tipo de sociedade que temos e aquela que queremos.

Geralmente, quando digo que mazelas como estas da Uniban são alimentadas pelo capitalismo, algumas pessoas dizem que sou um ultrapassado, que isso é coisa lá do século 19. Entretanto, ironicamente, os fatos insistem em me dar razão. Não é o tipo de sociedade que defendo que não tem mais espaço na História. É exatamente esta em que vivemos que não nos serve mais. Ora, o que esperar de um sistema social que vende mulheres em bancas de jornal, em filmes pornográficos, em programas de TV e campanhas publicitárias? Só desrespeito e violência, obviamente.

Eu não sei vocês, mas não me agrada nenhum pouco a ideia de voltar à Era dos tacapes e do “uga-buga”.
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Obs.: Por problemas técnicos, o blog As Crônicas do João fez sua postagem hoje, e não ontem como esperado. Obrigado.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O morro veio nos chamar...

Por João Paulo da Silva

Dia e noite, a fúria dos grandes centros urbanos nos persegue como se fosse uma sombra eterna, dando a entender que, por mais que a gente se vire, ela sempre vai estar no nosso encalço. Parece com aquele pesadelo inacabável que insiste em nos interromper o sono, cotidianamente. Um sono que, via de regra, já é sobressaltado. Um sono de quem sabe que não pode dormir.

O caos que estourou – mais uma vez! – no Rio de Janeiro nestes últimos dias não guarda muitos mistérios. A sombra e o pesadelo da “cidade maravilhosa” revelam-se claros e cruéis, mesmo com os governos e a mídia tentando maquiar o espetáculo. Parafraseando Chico e Tom, o que houve na capital fluminense foi o seguinte: o morro veio nos chamar. Os graves problemas sociais desse país, geradores diretos da violência, deram seu recado. Ou acabamos com a miséria e o desemprego ou a barbárie acaba conosco.

A imprensa falou em guerra de policiais e bandidos. De fato, é uma guerra. Mas uma guerra dos famintos, dos sem emprego, dos sem educação, dos miseráveis. Daqueles que o governo Lula empurra todos os dias para o narcotráfico, porque nas favelas brasileiras o Estado só sobe o morro na forma de chumbo grosso. No meio das balas da polícia corrupta e dos traficantes, estão os trabalhadores, negros e pobres. Ao que parece, as Olimpíadas do Rio já começaram. E a modalidade preferida pelos governos é o tiro ao alvo.

Bastou o circo pegar fogo para Lula e o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmarem que vão aumentar os investimentos na segurança pública do Rio em 2010. Traduzindo: mais armas, viaturas, helicópteros e pólvora nas favelas. Do jeitinho que os fascistas do Palácio Laranjeiras querem. Para o governador do Estado, Sérgio Cabral, e seu secretário de segurança, José Beltrame, nos morros do Rio, a única linguagem é a das metralhadoras.

Dessa forma, chegaremos em 2016 com várias estatísticas impressionantes, dignas de recordes olímpicos. Mas nenhuma delas nos dará orgulho.

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É triste, mas poderia ser pior...

Enquanto o Rio de Janeiro guerreava, o Rio Grande do Sul brincava. Calma. Vou explicar.

É que alunos da 4ª série de uma escola pública gaúcha, em Sapucaia do Sul, foram flagrados pela professora brincando de traficantes. Os garotos quebraram o giz da lousa, moeram até virar pó e embalaram em plásticos. Assim como na vida real, na brincadeira o objetivo era atrair mais usuários e ganhar outras bocas de fumo. Tudo ocorreu dentro da sala de aula, envolvendo crianças entre nove e dez anos.

Obviamente que isto é um reflexo da realidade pobre desses alunos, completamente entregues ao violento mundo da falta de saídas. Um mundo de absoluta responsabilidade dos governos. Mas, analisando com atenção e sem querer necessariamente menosprezar o fato, a verdade é que o caso poderia ser pior. Como?

Imagine se essas crianças estivessem brincando, por exemplo, de serem deputados e senadores. Já parou pra pensar como seria? Alunos desviando verbas públicas, empregando parentes, negociando cargos, criando funcionários fantasmas, corrompendo a tudo e a todos, votando projetos contra os mais pobres e beneficiando ricos e poderosos. Imaginou? Pois é. Um terror, não?

No meio da aula, crianças gritam:
- Eu quero ser o Arthur Virgílio!
- E eu o Collor!
- Ah, eu posso ser o Sarney? Deixa, vai, deixa!
Ai, ai... me dá até náuseas.
Enquanto no Rio Grande do Sul crianças brincam de traficantes, no Rio de Janeiro Sérgio Cabral e José Beltrame brincam de Hitler e Mussolini. A diferença é que a brincadeira dos governantes mata de verdade. E, na maioria esmagadora das vezes, não são os bandidos que morrem.
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OUÇA A MÚSICA ZEROVINTEUM, DA BANDA PLANET HEMP. UM RETRATO DO RIO DE JANEIRO.


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Pobre Yurinho

Por João Paulo da Silva

Quando era criança, lá pelos doze anos, eu costumava jogar bola com meu irmão no terraço da nossa casa. Ficávamos horas brincando de chute ao gol. Como não tínhamos autorização para jogar na rua, aquela acabava sendo a nossa diversão. Mas a gente até que gostava. Só não gostávamos mesmo era do Yurinho, o vizinho da frente. Ô moleque chato.

Ele sempre aparecia no portão lá de casa, pedindo pra jogar com a gente. Ficava um tempão implorando e enchendo o saco. Foram poucas as vezes em que permitimos. Eu e meu irmão tínhamos um motivo para não deixá-lo jogar. Qualquer coisinha o Yurinho chorava. Se levava um frango, chorava. Se perdia um pênalti, chorava. Se tomava uma bolada mais forte, chorava. E o pior: saía correndo e gritando que a gente tinha batido nele. Quer dizer, além de frouxo, o Yurinho também era mau-caráter.

Depois que passamos a impedi-lo de jogar com a gente, o safado começou a apelar para a deslealdade. Chegava no portão,todo malicioso, e falava:
- Oi. Posso jogar com vocês?
- Sai fora, Yurinho. Você só sabe chorar e mentir. – dizia eu.
- Mas eu quero!
- E você tem o que querer aqui, seu cagão?!
- É isso mesmo. Sai fora, Yurinho. – meu irmão completava.


Ele corria chorando para casa e contava para a avó que a gente não queria deixá-lo jogar e que, ainda por cima, tínhamos batido nele. Não demorava muito e a velha aparecia para reclamar. Ficava um tempão nos esculhambando, dizendo que não tínhamos coração, que éramos seres abomináveis etc. Com medo, eu e meu irmão corríamos para nos esconder. Só voltávamos depois que a vó do Yurinho saía. O mau-caráter fez isso várias vezes. Até que um dia resolvemos nos vingar.

Aí mudamos de tática. Se o Yurinho queria jogar sujo, então nós iríamos entrar no jogo dele. E, naquela época, sujo era literalmente sujo mesmo.
Um dia, como de costume, ele apareceu no portão.
- Posso jogar com vocês?
- Claro que pode, Yurinho. – falei.
- Sério?! Jura?! – surpreendeu-se o chato.
- É sério, sim. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho se animou e já ia abrindo o portão quando eu o interrompi:
- Epa! Peraí. Aonde você pensa que vai com essa pressa toda?
- Jogar com vocês, ué.
- Calminha aí, Yurinho. Calminha aí. Você pode jogar, mas com uma condição.
- Que condição?
Era chegada a hora da vingança.
- Se quiser brincar, você vai ter que chupar uma pedra aí da rua.
- Hã?? Mas isso é muito sujo.
- Pois é. – disse eu.
- É pegar ou largar. – sentenciou meu irmão.

A rua da minha casa era cheia de pedras, de todos os tipos. Grandes, médias, pequenas. E sujas também. Da lama ao cocô do cachorro. Uma imundice só. Mas era isso. Se o Yurinho quisesse jogar bola com a gente, teria que aceitar o desafio. Essa era a condição.
- Tá bom. Eu aceito.

E assim começou a nossa vingança. Todas as vezes que ele aparecia no portão querendo brincar nós pedíamos para ele chupar uma pedrinha. Escolhíamos sempre as mais sujas, que era pra ver o sofrimento do infeliz. Ainda assim, depois da penitência do Yurinho, nós só brincávamos por alguns minutos, para não dar muito gosto ao chato. Afinal, o bom mesmo era assistir ao sacrifício do Yurinho ao chupar as mais nojentas pedras da rua.
- Tá bom, Yurinho. A gente não quer mais jogar.
- Mas já?! Não foram nem cinco minutos?!
- É, eu sei. Mas já estamos cansados. Amanhã brincamos mais. Tchau.

Mantivemos o plano durante muito tempo. Tanto que cheguei a pensar que o Yurinho já havia lambido uma quantidade de pedras suficiente para fazer uma calçada inteira. Mas meu irmão e eu não tínhamos a menor pena do mau-caráter. Ele estava tendo o que merecia. Foi quando um “pequeno” detalhe começou a mudar os rumos da história.

À medida que os dias e as pedras chupadas passavam, uma notável alteração foi se dando no rosto do Yurinho. Ele estava ficando amarelo. Mas muito amarelo mesmo. E tínhamos a impressão de que, após uma nova pedra, o Yurinho ia ficando cada vez mais amarelo. Lembro, inclusive, que em sua última aparição em tons de amarelo ele parecia molho de mostarda. Isso mesmo. Última aparição. Porque teve um dia que o Yurinho não apareceu mais no portão. Passou-se uma semana. Duas. Três. E nada.

Até que um dia vimos a vó do Yurinho, vestida de preto, saindo de casa. Com o rosto vermelho de choro, ela parou para conversar na porta da Dona Neide. Da conversa, meu irmão e eu só conseguimos ouvir duas frases.
- Ele se foi, Dona Neide. Meu Deus, o Yurinho me faz tanta falta. – disse a vó do moleque, desatando no choro.
Pronto. Foi o suficiente.
- Puta que o pariu, João! A gente matou o Yurinho! – desesperou-se meu irmão.
- A gente quem? Eu vou negar até o fim. Quero falar com o meu advogado! Cadê o meu advogado?!

Ficamos naquela paranóia por uma semana. Não podíamos revelar nosso crime para ninguém, havia o risco de sermos punidos severamente, mas também não podíamos suportar a dor na consciência. Tínhamos matado uma pessoa. Tudo bem que era o Yurinho, mas ainda assim era uma pessoa. Pelo menos em tese. O que fazer, então? Contar toda a verdade e rezar para sermos condenados, no máximo, por homicídio culposo? Ou não contar nada e continuar insistindo no nosso próprio convencimento de que, afinal de contas, era só o Yurinho mesmo?

- Bolívia! – disse eu.
- O quê?
- Vamos fugir para a Bolívia! – repeti.
- Tá doido?! E dizer o que para a mamãe? “Oi mãe. Estamos indo para a Bolívia porque matamos o Yurinho.”.
- Tem razão. Tô doido.
De fato, não sabíamos o que fazer. Estávamos numa encruzilhada.

Após um mês do sumiço do Yurinho, jogávamos bola no terraço de casa. Ainda muito preocupados, brincávamos sem entusiasmo nenhum. Foi quando ouvimos uma voz no portão:
- Oi. Posso jogar com vocês?
Meu Deus do Céu! Era o Yurinho.
- Yurinho! É você mesmo?! Não pode ser! – eu gritei.
- Como não pode ser, João?! Cala essa boca! Graças a Deus que é ele! Yurinho! – gritou também o meu irmão.
O Yurinho nunca entendeu por que nós o abraçamos e o beijamos tanto naquele dia. E a gente mesmo nem quis falar. Ninguém precisava saber.
- Poxa. Não sabia que vocês gostavam tanto assim de mim.
- Ah, você realmente não sabe o quanto. – falei.
Depois da recepção emocionada, o Yurinho explicou o próprio sumiço.
- Fiquei doente. Vermes, sabe? Sério mesmo.
- Verdade? Que coisa estranha, hein?! – argumentei.
- Pois é. Comecei a ficar amarelo.
- Jura? A gente nem notou. – disse meu irmão.
Aí o Yurinho falou que sua mãe achou melhor ele passar o resto das férias com ela lá no sítio. Seria bom para se recuperar e coisa e tal. Depois que estivesse bem, poderia voltar a morar com a avó. Ela ficaria triste e sozinha, mas seria só por um mês. Logo tudo voltaria ao normal. E o Yurinho se mandou pra casa da mãe.
- Sabe, fiquei tão doente que quase morri.
- Mas não morreu! Vira essa boca pra lá, Yurinho! O importante é que você não morreu! – falei com toda convicção.
- Isso mesmo. Que bom que o Yurinho não morreu. E a gente nem precisa mais falar disso. É hora de jogar bola. Vamos jogar bola. – propôs meu irmão.
Aí o Yurinho já estava indo pegar uma pedra quando eu gritei:
- Ei! O que pensa que vai fazer?!
- Ué, chupar uma pedra pra poder jogar.
- Yurinho, larga já essa pedra! Pelo amor de Deus! Larga isso já!


Hoje, alguns anos depois, faço outra interpretação de nossa atitude. Na verdade, não estávamos castigando nem nos vingando do Yurinho. Estávamos, inconscientemente, ensinando uma lição aquele pequeno mau-caráter, que gostava de caluniar os outros. Queríamos mesmo era mostrar ao Yurinho o quanto a vida era dura e suja, assim como as pedras lá da rua. Sabe, era uma metáfora. Uma metáfora sobre as muitas pedras que ele ainda encontraria pelo caminho. Era, na verdade, aquela história da pedra do Drummond, sabe? Aquela do meio do caminho. Era isso que a gente queria ensinar pro Yurinho. Mostrar pra ele que só um homem de bom coração passaria pelas adversidades da vida. Não havia espaço para o mau-caráter, entende? Bom, era isso. Estou convicto de que a História nos absolverá. E agora espero que o Yurinho também. Era pro bem dele.

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OBS.: Caros leitores e leitoras, por motivos de correria no trabalho, os textos do blog As Crônicas do João serão publicados às terças-feiras, e não mais aos domingos como antes. Entretanto, a periodicidade semanal permanece. Forte abraço.

domingo, 11 de outubro de 2009

We have bananas!

Por João Paulo da Silva

Natal é uma cidade surpreendente. Desde que cheguei aqui, já me deparei com várias situações inusitadas e muita coisa estranha. Mesmo já há algum tempo nas redondezas, ainda me intriga bastante o dialeto falado pelos potiguares. Aqui, por exemplo, descobri que o povo costuma chamar ânus de “lata de doce”. Nem me pergunte o motivo. Não faço a mais vaga ideia. Bom, mas não era exatamente sobre isso que eu ia falar. O fato é que, dia desses, me ocorreu um “causo” absurdamente insólito, daqueles que se não fosse eu que estivesse contando você poderia dizer que era mentira.

Foi numa manhã. Eu tinha ido à rodoviária comprar uma passagem para Maceió, iria passar alguns dias com a minha família, rever amigos, essas coisas. Assim que adentrei (sempre quis usar essa palavra) o espaço da rodoviária, vi se aproximar de mim, pelo canto do olho, um homem. Não era nem tão velho nem tão novo. Careca, meio encurvado, vermelho feito assadura de criança e vinha exibindo um sorriso banguela. Ele continuou se aproximando, estava bem vestido, e quando chegou mais perto disse:

- Hi. Excuse me, please.
Diante da minha perplexidade, ele se apressou:
- Oh, sorry. Do you speak english?
Ihh. O cara é gringo. – pensei. E era mesmo. Com sotaque perfeito e tudo. Para não passar vexame, tentei arranhar alguma coisa.
- Oh, no muito. More or less, entende? Meu inglês não ser very good. Você não speak minha língua?


Aí o cara começou a falar um português de gringo, todo enrolado, pra ver se eu entendia alguma coisa. É engraçado quando a gente não entende a língua do outro e começa a falar pausadamente, achando que assim vão entender o que estamos dizendo.
- Eu ser um turista inglês. Meu mala ser roubado em seu terra. – disse isso e me passou um pequeno papel, com um risinho meio constrangido.
O bilhete estava escrito em bom português, dizendo que o gringo em questão havia sido roubado e precisava de R$ 2,00 para voltar ao hotel e pegar o resto de suas coisas. Pô, puta sacanagem hein?! Levaram tudo do cara. Fiquei com a maior pena e dei o dinheiro pro sujeito voltar.

- Não te preocupas, hermano. Mi casa, su casa, understand? – falei, já misturando os idiomas.
- Oh, thank you very much. – me disse ele, todo emocionado.
- Como? Very macho? Quem não é macho aqui, rapaz?!
Mas o pobre turista inglês se adiantou a corrigir o mal entendido.
- Eu querer dizer o-bri-ga-do.
- Ah, bom. Sendo assim, tudo bem. Não tem de quê.
E lá se foi o gringo.
Fiquei pensando naquilo durante a semana inteira. Era impressionante como a violência estava crescendo. Não respeitavam nem mesmo os gringos banguelas, pô. Absurdo. Mas a surpresa, de verdade, a cidade de Natal guardou pra minha volta de Maceió.

Assim que desembarquei de volta da minha terra, na saída da rodoviária, avistei uma figura familiar. Vinha se aproximando como quem não quer nada. Quando chegou mais perto, pude reconhecer perfeitamente. Careca, vermelho, sorriso banguela etc. Não demorou muito para o homem falar comigo.
- Excuse me, please. Eu ser um turista inglês... – começou ele.
Na hora, fiquei furioso. Respondi na bucha:
- “Excuse me, please” é o cacete, rapaz!
Era o gringo da outra semana. Lá vinha ele com o mesmo bilhetinho e a historinha pilantra. Que ladrão safado! Tinha me dado um golpe com aquela conversa de turista inglês roubado. Fiquei muito puto. Inglês son of the bitch da peste.
- Tu é muito cara de pau “mermo”, né? Tu tá achando que a gente é trouxa?! Que é só chegar aqui falando inglês e passar a perna nos outros?! We have bananas, tá ligado?!


Aí parti pra cima do bandido pronto pra encher aquela cara vermelha de porrada. Quando peguei o cara pela gola, ele começou a berrar:
- I don't understand, sir! I don't understand, sir!
- Not understand uma ova, rapaz! Vou te mostrar uma língua que todo gringo safado entende.
- Help, help, help! – gritava o ladrão.


Começou a juntar gente pra ver que confusão era aquela. Ainda acertei duas mãozadas no pé do ouvido do salafrário antes de a multidão me segurar.
- É ele! É ele! Eu sei que é ele! Me roubou outro dia com essa conversa mole. – eu gritava desesperado.
Como as pessoas não me soltavam, o larápio do gringo acabou escapando. Mas eu continuava gritando, por entre os braços que me seguravam:
- Come back, seu ladrãozinho de merda! Come back! The book is on the table, rapaz! Fuck you! E mother fucker também! Tá pensando que é só assim?! Na minha terra é diferente, ouviu?! We have bananas, man! We have bananas!
Natal ainda vai me matar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Detalhes

Por João Paulo da Silva

Oportunidades são perdidas, casamentos se desfazem, amizades terminam e amores são abortados antes mesmo de começarem. Tudo isso por causa dos detalhes. Por menores e mais insignificantes que pareçam, os detalhes podem decidir os rumos de nossas vidas. Pense quanta coisa deixou de acontecer porque você simplesmente não deu a devida atenção aos detalhes. Ou, ainda, fatos que poderiam ter sido evitados caso você tivesse percebido o papel decisivo dos detalhes nas relações humanas.

A maioria de nós – muitas vezes de forma inconsciente – está sempre querendo se convencer de que os pormenores da vida não têm lá essa importância toda. A verdade, entretanto, é que os pequenos aspectos de nossa existência acabam realmente ocupando um grande espaço na hora das definições, ainda que muitos não percebam isso. Eu, por exemplo, em várias ocasiões da vida subestimei a força dos detalhes. E foi justamente por esta razão que acabei perdendo alguns dos amores que me apareceram. Detalhe é fogo.

Primeiro foi a Jéssica, quando eu tinha uns 7 ou 8 anos. Loira, cabelos encaracolados, magra, rostinho de anjo, linda. Parecia uma modelo gaúcha. E o melhor: na 2ª série do primário, sentava ao meu lado na escola. Era uma companhia inseparável, fazíamos tudo juntos. Aí foi pintando aquela paixãozinha de infância, de ambas as partes. E eu teria conseguido namorar a Jéssica se ela um dia não tivesse notado uma verruga que eu tinha no indicador da mão direita. Foi o fim. Dali em diante, a Jéssica não podia olhar para a minha verruga que tinha logo ânsias de vômito. Aí mudou tudo. Bastava eu chegar perto para ela gritar: “Sai daqui, João! Não chega perto com essa coisa!”. Maldito detalhe.

Depois veio a Pâmela, aos 11 anos. Também na escola. E também loira e linda. Chegamos até a trocar cartinhas carinhosas e a dividir o lanche no recreio. Parecia coisa séria mesmo. Apostei todas as minhas fichas. Estava convicto. Nada impediria aquela iniciante história de dar certo. No dia em que eu havia decidido pedi-la em namoro, ocorreu a tragédia. Durante o intervalo das aulas, no pátio da escola, em meio a outros colegas, eu e a Pâmela conversávamos. Não lembro exatamente o quê, mas alguém na hora contou um caso que me fez rir bastante. Graças à crise de riso, acabei deixando escapar um sonoro pum. Ficou todo mundo me olhando estranho, principalmente a Pâmela que fez logo uma careta. Pronto. Não deu outra. Estava claro que a relação não se sustentaria diante daquele pum. E não adiantou eu argumentar que tinha sido apenas um punzinho e tal. Um pum era sempre um pum. Perdi a Pâmela e ainda ganhei um apelido, que obviamente não revelarei aqui.

Com a Luana, minha vizinha, tinha tudo para ser diferente. Mesmo porque, aos 12 anos, eu era praticamente um homem. Já tinha até bigode. Bem fininho, é verdade. Mas ainda assim um bigode. E um verdadeiro homem jamais se submeteria a vexames como os que eu tinha passado. Afinal, o momento era outro. A Luana apertava as minhas bochechas, me dava bitoquinhas (selinhos) e dizia que se casaria comigo quando eu crescesse. Mas eu não estava disposto a esperar e sempre respondia prontamente:

- Não é melhor a gente casar primeiro?! Aí você me espera sem perigo nenhum, porque já vamos estar casados mesmo.
Ela sorria e dizia para a minha mãe:
- Uma graça esse seu filho, né?!


Um dia resolvi dar um ultimato naquela história. Arrumei uma bolsa, coloquei umas roupas e fui para a porta da casa da Luana, esperá-la voltar do trabalho. Quando ela chegou à noite e me viu cochilando, ficou toda compadecida. Falei que estava ali pronto para me casar e que não aceitaria um “não” como resposta. Mas aí a Luana veio com uma conversa de que havia um pequeno detalhe que impediria nosso casamento.

- Qual? – eu quis saber.
Ela riu, provavelmente achando graça da postura de homem que eu estava querendo assumir.
- Nossa idade, querido.
- Mas por quê? Só por que você tem 22 anos e eu tenho 12?! Isso é só um detalhe, Luana.

Eu, porém, ainda não compreendia a força decisiva que possuem os detalhes. Só depois o tempo faria o favor de me ensinar. É como me disseram uma vez: “No amor e na guerra, o importante são os detalhes”.

Você duvida? Eu não.
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Obs.: Por motivos de trabalho acumulado, excepcionalmente desta vez o blog As Crônicas do João está fazendo sua postagem na segunda-feira. No próximo domingo, tudo voltará ao normal. A mesma justificativa vale para as duas semanas em que não houve postagem. Abraços.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Dona Ritinha

Por João Paulo da Silva

Dona Ritinha mora em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Vive sozinha em sua casa e deve estar hoje na casa dos oitenta anos. Eu não a conheço pessoalmente, e o pouco que sei me chegou aos ouvidos através de um amigo. Fisicamente, só posso imaginá-la. Provavelmente tem longos cabelos grisalhos, o rosto cortado de rugas e um andar encurvado. Não sei ao certo. Sei apenas que sua única companhia é a presença incômoda da solidão. Acho que dona Ritinha é uma mulher infeliz.

Teve três filhos. Dois meninos e uma menina. De seu marido, não sei nada. Não sei se está vivo, morto ou entrevado. Já dos filhos, sei que os criou com todo o afeto que as mães possuem, mesmo as piores e mais desatentas. O amigo que me falou de dona Ritinha me disse que ela é uma pessoa muito amável e faladeira. Adora contar histórias. Registra tudo que pode em sua memória idosa. É a resistência da tradição das narrativas orais, muito comuns entre os velhos de tempos mais velhos ainda.

Outro dia, o tal amigo me fez conhecer uma história sobre a própria dona Ritinha. Depois de criados, os filhos desta velha senhora se foram. Tomaram seus rumos. Cada qual seguiu seu caminho. Um a um, foram deixando a casa onde cresceram sob os cuidados da mãe. E dona Ritinha os viu partir como se fossem pedaços que se desprendem do corpo com o tempo. Quando deu por si, estava só, cheia de ausência numa casa que parecia dobrar de tamanho com o passar dos anos. É verdade que os filhos mandavam notícias, apareciam de vez quando. Mas não era a mesma coisa.

Um dia, dona Ritinha resolveu pôr a casa para vender, com plaquinha de “vende-se” e tudo na porta. Começaram a aparecer interessados. Gente querendo olhar a casa, saber das condições e do preço. Dona Ritinha mostrava tudo. Falava dos cômodos, das instalações, do encanamento e da excelente fiação elétrica da casa. A velha senhora havia cuidado de seu lar como cuidara dos filhos e passava horas conversando com os possíveis compradores sobre as maravilhas do lugar. Entretanto, o negócio sempre esbarrava no preço.

Dona Ritinha cobrava uma fortuna pela casa. Os anos passavam e ninguém comprava o imóvel, embora quase toda semana aparecessem compradores interessados. Mas o alto valor sempre impediu a venda. Até hoje a plaquinha de “vende-se” continua na fachada da casa. Dia desses, porém, o tal amigo que me contou a história quis saber quanto dona Ritinha pedia pela casa. Ficou abismado.

- Mas também com um preço desses a senhora não vai conseguir vender nunca.
- E quem disse que eu quero vender esta casa, meu filho?
- Então por que diabos a senhora pôs essa placa de “vende-se”?
- Porque, graças a ela, de vez em quando aparecem pessoas para conversar comigo e me fazer companhia, mesmo que por algumas horas.

Sei que não há leis para isso, mas acho que deveria ser proibido ficar sozinho nessa vida.

domingo, 6 de setembro de 2009

O mercado das almas

Por João Paulo da Silva

Eu respeito a fé das pessoas. Penso que cada um pode acreditar no que quiser. Contudo, o mundo está tão à beira do caos que não basta apenas crer para ser salvo. Hoje, mais descaradamente do que nunca, é preciso pagar caro para ir ao “paraíso”. Um investimento sem retorno garantido e que custa os olhos da cara.

Os escândalos envolvendo as falcatruas financeiras do bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus e da Rede Record, me levaram a uma instigante reflexão: a de que Deus, talvez, seja a invenção humana que mais deu (e dá) lucros ao longo da história. Sabe, eu fico até na dúvida. Para fazer dinheiro fácil, é melhor fundar um banco ou uma igreja?

Cotidianamente, nos templos e nas TVs, ocorre uma acirrada disputa de mercado. São diversas facções religiosas concorrendo entre si para ver qual delas engana o maior número de fiéis. As promessas mais absurdas são feitas em troca de exigências financeiras cada vez mais imorais. Em nome de Deus, se pede de tudo: dinheiro, casas, carros, vale transportes e até tickets alimentação. A Igreja Universal, por exemplo, defende uma Teologia da Prosperidade. Prosperidade do bispo Edir Macedo e de seus pastores, claro. Ao que parece, o mercado das almas é tão lucrativo quanto o mercado financeiro.

Entretanto, arrancar dinheiro de bilhões de seres humanos infelizes e desesperados não é privilégio apenas do protestantismo, que encontrou no capitalismo sua verdadeira alma gêmea. A Igreja Católica não deixa nada barato. Durante séculos, a grande senhora da Idade Média condenou a usura. Dos outros, evidentemente. Na época, porém, ela vendia de tudo: desde indulgências até incontáveis ossos do corpo de Cristo, o que me fez chegar à conclusão de que Jesus, por causa do grande número de fêmures, não era um homem, e sim uma centopéia.

Hoje a Igreja Católica vende padres cantores e uma infinidade de quinquilharias da fé. Além, é claro, de possuir um 1/5 de todo o patrimônio imobiliário da Itália, o que fez o Vaticano lucrar 1,47 bilhões de euros com a especulação entre os anos de 2004 e 2005. Para as igrejas, semear ilusões sobre uma vida melhor após a morte não é suficiente. Sem o menor pudor, os profetas oferecem uma esdrúxula modalidade de credo: a “fé pegue e pague”.

Quando eu era garoto, sempre me disseram que Deus morava no céu, nas nuvens ou até mesmo no coração dos homens. Atualmente, sei que isso não é verdade. Ao que tudo indica, Deus vive em Nova Iorque, mais precisamente em Wall Street.

Guerra de TVs

Impossível não comentar a guerra midiática entra a Rede Globo e a Rede Record. Não é somente uma disputa pelo Ibope, é necessariamente um confronto por cifras estratosféricas. Em busca do monopólio, cada uma delas revela as sujas verdades da outra. As emissoras utilizam a concessão pública que receberam para fazerem fortunas, levando, assim, o privado para o público e o público para a privada.

Tão real quanto o desvio das doações dos fiéis para aumentar o patrimônio televisivo de Edir Macedo, é a ligação da Rede Globo com os episódios mais obscuros do poder. Seja no apoio à ditadura militar ou na “mãozinha” dada a Collor em 1989 (para citar alguns exemplos), o grupo da família Marinho sempre cumpriu o papel de enganar os milhões de brasileiros ligados no plim-plim. Ah, e não esqueçamos, por favor, o senhor Silvio Santos, que não foi citado nessa história toda, mas possui um cassino disfarçado de canal de TV.

O conflito Globo X Record não se trata de uma guerra entre mocinhos e bandidos. Não há diferenças entre os barões da comunicação, apenas semelhanças. Aqui, vale tudo para encher o cofre. Na verdade, não há televisão no Brasil. O que existe são grandes caça-níqueis. Nada mais.

domingo, 30 de agosto de 2009

A hora do cartão vermelho

Por João Paulo da Silva

Gostei dessa história do cartão vermelho. Foi uma boa sacada do Suplicy. Eu deveria ter pensado nisso antes. Entretanto, meu cartão vermelho não é apenas para José Sarney. É para todo o Senado. Para o Suplicy, inclusive. Por mim, iriam todos mais cedo para o chuveiro (quer dizer, já iriam tarde). E chuveiro, aqui, é só um eufemismo. Para os senadores, o termo correto é cadeia mesmo.

O arquivamento das acusações contra Sarney já era esperado, assim como o engavetamento das denúncias contra o tucano Arthur Virgílio. Costurando o velho toma lá, dá cá, Lula provou mais uma vez que, de fato, é um pizzaiolo de mão cheia. Ninguém investiga ninguém e todo mundo fica na moita. Sabe como é, né? É preciso ter cautela. Se o povo resolve ir às ruas... já viu!

Mas eu espero, honestamente, que ninguém no Brasil tenha apostado que, dessa vez, o Conselho de Ética iria ser, digamos, ético. Se alguém apostou, quebrou a cara. E se apostou dinheiro então... ui. Enfim, que justiça pode haver quando os bandidos são os próprios juízes? Afinal, corrupto que é corrupto tem seu próprio código de ética.

Confesso que desde que a crise política do Senado começou, há mais ou menos seis meses, passei a assistir a TV Senado com maior frenquência. Não vou esconder que os emocionantes bate-bocas se tornaram, para mim, atrações irresistíveis. Até pipoca com refrigerante eu pego na hora das sessões. Esses dias, porém, fiquei pensando em como tornar mais divertida a brincadeira. Aí tive uma ideia.

Lembrei que uma das possibilidades da TV Digital diz respeito a uma interatividade entre o espectador e o programa jamais vista antes. Na mesma hora, pensei como seria bacana poder interagir com os senadores durante as sessões. Já pensou nisso? Qualquer safadeza que as excelências dissessem ou fizessem, você, do outro lado da tela, no conforto do lar, apertaria uma tecla no controle remoto e o senador escolhido receberia um choque elétrico na cadeira. Ou ainda: ao apertar uma outra tecla, uma enorme mão-robô desceria do teto do Senado e acertaria um safanão na cabeça do senador de sua escolha. Ou, quem sabe, fosse até possível acertar uns tomates e ovos podres também. Bom, as possibilidades seriam ilimitadas.

Mas, provavelmente, o projeto não daria certo. O divertimento não compensaria os custos. Além do mais, muitas pessoas – assim como eu – não fariam outra coisa da vida a não ser dar choques e safanões biônicos em senadores. Enfim, o melhor mesmo é fechar aquela espelunca. Cartão vermelho neles!

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E tem aquela do cara que ligou para a Rádio Senado, querendo pedir uma música.
- Alô? É da Rádio Senado?
- É sim, senhor.
- Pô, toca aí a mais pedida.
- A mais pedida?
- É, cara. Aquela que começa assim: “se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão”.
Taí. Poderia até virar uma campanha nacional.
Ligue você também para a Rádio Senado e peça a mais tocada da semana!
Bom, é só uma ideia.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Uma guerra silenciosa

Por João Paulo da Silva

Talvez algumas pessoas ainda não tenham se dado conta, mas existe uma guerra sendo travada todos os dias na grande rede de computadores. Naturalmente, você já ouviu falar que hackers são aqueles sujeitos que invadem computadores, sistemas de segurança e causam prejuízos gigantescos para uma série de circuitos no ciberespaço. Gente que rouba senhas, altera contas de bancos e ganha fortunas com a desgraça dos outros.

Bom, aqui há uma polêmica. Os hackers não aceitam que os responsáveis por esses crimes na rede sejam chamados de hackers. A melhor denominação para estes senhores é a palavra cracker (quebrador). Um hacker quer construir e melhorar programas de computador, garantindo que as pessoas tenham acesso a este conhecimento e possam compartilhá-lo com outras. Um cracker não. Este quer destruir sistemas e causar danos, uma atividade que se distancia bastante do ideal hacker de colaboração.

Um aspecto importante desta guerra silenciosa diz respeito ao livre acesso a informações na internet. Esta é uma pendenga antiga e que ainda está em curso, sem sinais de quando chegará ao fim (se chegar ao fim). O mundo controlado pelos conglomerados econômicos tenta dominar o fluxo de informações na internet. Para isso, não disponibiliza nenhum material de áudio, vídeo ou software sem pedir dinheiro em troca. Não existe a ideia de cooperação neste setor da sociedade. Aqui, ter significa pagar (como se em outras áreas do mundo fosse diferente). Isso é um tanto quanto paradoxal se observarmos que a ideia da internet é compartilhar livremente conhecimentos.

A grande batalha nesse terreno tem a ver com a necessidade de ter as coisas sem precisar pagar por elas. Aí entra em cena a atividade hacker, permitindo que milhões tenham acesso a um sem-número de materiais culturais, como vídeos, músicas, clipes, programas, jogos etc. É nisto que consiste o conflito por trás das interconexões. Socializar ou privatizar ainda mais os bens culturais criados pela humanidade?

A pirataria, tão combatida pelas grandes corporações, é uma forma de burlar o controle e a manipulação das informações, não podendo ser considerada um crime. Roubados, de verdade mesmo, são aqueles que constroem o mundo, mas não podem aproveitá-lo. Ao escolherem a doação e a liberdade de informação como atividade vital, os hackers põem em campo, ainda que muitos não o façam conscientemente, uma justa ação contra os interesses do capital em gerir e controlar os fluxos de conhecimento.

A defesa da informação livre ocupa hoje um espaço destacado no enfrentamento contra os interesses econômicos dos conglomerados industriais. Este poder de criar riqueza cultural na rede e distribuí-la para que todos tenham acesso é fundamental para entendermos o verdadeiro papel dos hackers na internet.

Os donos do mundo com certeza não, mas Robin Wood provavelmente estaria orgulhoso de seus herdeiros cibernéticos.

domingo, 16 de agosto de 2009

A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho

Por João Paulo da Silva

Machista declarado, talvez até incorrigível, o Gilmar é o tipo de sujeito que não perde a chance de soltar uma piadinha infame. Pode perder tudo. Os amigos, a namorada, a vergonha na cara, o respeito. Só não perde a piada. Por pior que seja. E parece que a situação ficou ainda mais absurda depois que o Gilmar descobriu um livro que conta as autênticas origens dos contos de fadas. Falando, assim, ninguém acredita. Mas, segundo o Gilmar, as histórias da carochinha são, na verdade, tramas fantásticas que envolvem traição, sexo e violência.

Na semana passada, para minha surpresa, recebi por e-mail um texto no qual o Gilmar “revela” a verdadeira e cabeludíssima história de Chapeuzinho Vermelho. Se você tem menos de 18 anos, desligue o computador, tome seu leitinho e vá dormir. Abaixo transcrevo o texto na íntegra. Mas cuidado! O Gilmar não tem escrúpulos.

Quero esclarecer, antes de qualquer coisa, que a única personagem dessa história que realmente é dona de um caráter honrado é o Lobo, pois do começo até o final ele diz que vai comer a vovozinha, que é mau e pronto! Não nega em momento algum sua natureza.

Como todos sabem, Chapeuzinho Vermelho morava numa bela casa com sua mãe, mas o que a história não conta é que seu pai era caixeiro-viajante e, dificilmente, parava em casa. Certa feita, com o marido viajando, a mãe de Chapeuzinho aproximou-se tensa da filha e, tropeçando nas palavras, disse:
- Chapeuzinho, por que não vai levar uns docinhos para a vovozinha?
- Outra vez, mamãe?! Não faz nem dois dias que eu fui lá.
- Ora essa, menina! Vai me desobedecer? E depois não custa nada você ir novamente.
- Tá, tudo bem. Eu vou. Mas não sei qual o motivo de querer que eu a visite tantas vezes.
- Não é nada demais. – disse a mãe, ainda mais nervosa – E não demore nem mais um minuto aqui. Vá indo, vá!

Por que a mãe de Chapeuzinho tinha tanto interesse que a filha fosse ver a avó? Por que gostava muito da velha? Por que não queria ser denunciada por maus tratos ao estatuto do idoso? Errado! Então, por quê? Muito simples. Naturalmente porque queria ficar sozinha em casa, estava esperando alguém. E quem era esse alguém? Provavelmente o amante, o pé-de-pano, com quem ela traía o pobre do marido. Se estivesse realmente interessada no bem estar da velha, teria ela mesma levado os docinhos.

Quando Chapeuzinho já estava de saída, sua mãe gritou do quarto:
- E não se esqueça! Vá pelo bosque. É o caminho mais longo, mas é o mais seguro. Se for pela floresta, você pode ser apanhada pelo Lobo Mau.
Agora você deve estar imaginando que a mãe de Chapeuzinho estava preocupada com a segurança da filha, não é? Errado de novo. Ela queria mesmo é que a filha demorasse bastante para voltar. Só assim teria tempo de sobra para aproveitar com o amante.

Mas enganam-se aqueles que pensam que só a mãe era quem tinha desvios de comportamento. Chapeuzinho não ficava nem um pouco atrás. Ela não era nenhuma criança, como contam as outras versões. Chapeuzinho já era uma pré-adolescente, estava entrando na puberdade. Hormônios a todo vapor, pelinhos nascendo, aquele calorzinho entre as pernas e por aí vai. Estava mesmo era descobrindo o sexo, e também tinha lá seus fetiches. Chapeuzinho não desobedeceu sua mãe e foi pela floresta porque era preguiçosa não! Foi porque queria realmente ser pega pelo Lobo. Achava o perigo excitante. Aquela mata selvagem e aquele sujeito peludo habitavam os seus sonhos mais eróticos.

Ela saltitava excitadíssima pela floresta quando de repente apareceu em sua frente o Lobo Mau.
- Para onde vai garotinha? – quis saber o Lobo.
- Vou levar uns docinhos para minha vovozinha, Seu Lobo. – respondeu Chapeuzinho com um dedo na boca e uma voz dengosa.
Bom, essa parte da história você conhece. O Lobo arquiteta um plano, chega primeiro na casa da vovozinha, come a velha e espera Chapeuzinho na cama, já fantasiado. Batem na porta. Toc, toc. Vem a voz de dentro da casa:
- Quem é?
- Sou eu, vovó. Sua netinha.
- Entre.
Já diante do Lobo, Chapeuzinho fala:
- Te trouxe uns docinhos.
- Tire a roupa! – diz o Lobo.
- Como?
- Isso mesmo! Não perca tempo, tire logo a roupa!
- Mas e as preliminares?
- Sem essa de preliminares, o caçador vem aí. Vamos!
- Assim eu não quero.
- Você não tem o que querer. Vamos logo!
- Nossa! Que boca grande!
- É pra te comer!
- Vem, Malvadão.
E Chapeuzinho foi comida.

Depois de ter comido a vovó e a Chapeuzinho vermelho, o Lobo Mau foi fazer a sesta, tirar o sono dos justos. Enquanto roncava alto, alguém começava a se aproximar. Era o caçador. Atrasado, como de costume. Agora por que é que ele chegou atrasado? Por que perdera a hora? Por que ainda fora passar seu uniforme de caçador? Ou por que devia estar na casa da mãe de uma certa menina de capuz vermelho? Isso mesmo, caro leitor. Ele era o amante!

Aproximou-se na ponta dos pés, apontou a espingarda e disparou com o Lobo ainda dormindo. Que traição! Canalha! O pobre Lobo morreu como um mártir, um verdadeiro herói. Agora você deve estar imaginando que essa história tem um final feliz, não é? Sinto muito em informar, mas o desfecho é trágico. Uma verdadeira tragédia!

Depois de ter sido retirada da barriga do Lobo, junto com sua avó, Chapeuzinho Vermelho descobre que sua mãe resolveu fugir com o caçador, abandonando tudo que tinha, inclusive o corno. Ia viver uma aventura lá pelas bandas da floresta. Revoltada e desiludida com os seres humanos, Chapeuzinho foge de casa e vai morar com a avó. A avó, por sua vez, abre um bordel, onde Chapeuzinho Vermelho é obrigada a trabalhar como prostituta. Anos mais tarde, é encontrada morta no banheiro com os pulsos cortados. Suicídio! Suicidara-se de desgosto e de saudades do Lobo, o grande amor de sua vida.

Fim.

Assim que terminei de ler o texto, fiquei chocado. Imediatamente, enviei uma resposta ao Gilmar, dizendo que achava tudo aquilo um tremendo absurdo. Ele estava destruindo a singeleza de uma das mais belas histórias da literatura universal, além – é claro – de estar assumindo uma postura machista.

No dia seguinte, o Gilmar me responde o e-mail:
“Sei que você deve estar assustado e incrédulo com tudo isso, mas é a mais pura verdade. Quer dizer, a mais suja verdade. Não acredita em mim, não é? Pensa que tudo não passa da imaginação fértil de um pervertido qualquer, não é? Está enganado! Se não acredita, então me diga por que é que Branca de Neve tinha que se perder justamente numa floresta e encontrar logo a casa de sete anões? Por que não sete anãs? Hein?! Hein?! Responda!!!”.

É fato. O Gilmar não tem escrúpulos. E depois dessa também não tem mais jeito.