domingo, 16 de fevereiro de 2014

O espetáculo do absurdo e a apoteose da canalhice

Por João Paulo da Silva

De dentro dos palácios do poder, parece que havia uma torcida organizada. Talvez em função do clima de Copa do Mundo, eu acho. Governos, setores da imprensa e um Congresso Nacional com vocação para a canalhice cruzaram todos os dedos, das mãos e dos pés, à espera de uma “justificativa” que respaldasse a histeria da mídia e o “balé quebra nós” do Estado contra as manifestações populares.

Torciam por um tiro no pé dos protestos, ou um rojão na cabeça de alguém. Aliás, nem torciam, nem esperavam. Na verdade, buscavam que isso acontecesse. Desde junho de 2013, os governos neste país, tantos os da direita carimbada quanto os do PT, não fizeram outra coisa a não ser procurar ou “fabricar” uma razão para desmoralizar as manifestações que os fizeram tremer dentro dos palácios.

Puxem pela memória. Na internet, o material é farto e a grande imprensa até chegou a noticiar, mas só depois que ficou estranho esconder. Para citar apenas dois exemplos. É fácil lembrar as imagens de um policial militar infiltrado, o famoso P2, atirando um coquetel molotov contra a própria PM ou ainda o vídeo que flagrou um policial, dessa vez fardado, quebrando a janela de uma viatura. Um pastel com guaraná para quem adivinhar o objetivo.

A morte de um inocente, atribuída à inconsequência de dois jovens numa manifestação, é a tragédia com a qual os governantes sonharam. É o pretexto ideal para que os governos façam aquilo que tentam desde junho. Aos atuais donos do poder, é preferível criminalizar os protestos, ameaçar liberdades democráticas e espalhar o medo do que atender as reivindicações populares mais básicas, que, por lei, já são direitos. Mas descumpri-las todos os dias, claro, não é crime.

A tentativa de estabelecer uma relação “criminosa” entre os partidos de esquerda com os jovens presos, os black blocs e os atos de vandalismo é tão patética que, além de revolta, causa vergonha alheia. Parece roteiro de filme B. Depoimentos sem pé nem cabeça, declarações de um advogado fanfarrão que “sabe de tudo” e insinuações descaradas de uma imprensa malabarista, que não faz jornalismo, faz “lixeratura” de disse-me-disse.

Nas páginas dos jornais, nos sites e entre os reclames do plim-plim, desenrola-se uma trama de ficção esquizofrênica, estrelando milhares de figurantes com cachês de R$ 150, recebendo quentinhas e carregando bandeiras. Tudo pago por uma esquerda bolchevique soviética que quer o caos no Brasil. Só falta mesmo o Rodrigo Constantino e o Reinaldo Azevedo (colunistas da Veja) escreverem que, nas quentinhas, vem caviar também.

É o espetáculo do absurdo. A apoteose da canalhice.

Mas... consideremos duas hipóteses.

A primeira, de que os rapazes presos são apenas dois jovens que cometeram uma baita inconsequência, num afã palerma, inspirados por uma tática inadequada para o momento e à revelia do movimento. Numa histeria ensaiada, a imprensa e a polícia chamam de assassinato. Embora não tenham tratado da mesma forma, por exemplo, o caso da gari Cleonice Vieira, de 54 anos, que teve uma parada cardíaca e morreu, depois de inalar gás lacrimogêneo de uma bomba lançada, em local fechado, por um PM, em Belém (PA), durante um protesto em junho do ano passado.

Uma fatalidade tirou a vida de Santiago, é verdade. De um trabalhador, pior ainda. E é justo que essa dor seja chorada. Entretanto, não é honesto fazer com que a comoção das pessoas sirva de munição para autorizar os governos e o Congresso a aplicarem uma “lei antiterrorismo”, merecidamente apelidada de “AI-5 Padrão Fifa”, a fim de transformar os protestos, os movimentos sociais, sindicatos e a esquerda em filiais da Al-Qaeda. Aliás, não é só desonesto. É também muito perigoso. É querer reeditar o passado para evitar o futuro.

Agora, a segunda hipótese, muito mais sombria, é a de que, de fato, os dois jovens foram pagos para causar confusão dentro das manifestações. Mas não pela esquerda, claro, que não ganha nada com isso. A esquerda que quer mudar o país quer ver mais gente nas ruas por um ideal, e não pagaria para que alguns poucos cometessem atos que esvaziassem os protestos. Não faz o menor sentido. Só um imbecil faria isso. Se há alguém interessado em acabar com as manifestações, seja minguando-as ou reprimindo-as, esse alguém é a direita, governista ou não, tradicional ou de terninho vermelho. E ela pagaria por isso. Afinal, já fez coisas piores. Um factoide a mais...

Os protestos de milhões só ocorreram porque, desde junho de 2013, o escândalo da miséria social brasileira atingiu os limites da mais absoluta cretinice na figura dos governos. O Brasil é um país onde a saúde e a educação públicas estão em colapso. Aqui, ter um lugar para morar virou sinônimo de regalia. O transporte coletivo é um navio negreiro pago pelos próprios escravos. O governo permite e promove a farra dos bancos e os privilégios dos empresários são leis intocáveis.

Com uma realidade dessas, torrar bilhões de recursos públicos para realizar a Copa do Mundo mais cara de todos os tempos, organizada por uma entidade corrupta e bilionária, e aprofundando as desigualdades, não poderia ter outro desfecho. O descontentamento da população se materializou na arena mais temida pelos governos: as ruas. E é nas ruas que ele terá a chance de ser resolvido. “Queremos mudança!” foi a mensagem compartilhada por milhões em junho. E ela continua no topo.

Os que não querem mudar o país profundamente, aqueles que são cegos e surdos pela própria natureza e ignoram os pedidos dos cartazes, usam a vida de Santiago e a dor de sua família para tentar proibir a indignação diante das injustiças. Não é novidade ver a direita de sempre espernear pelo aumento da repressão aos protestos. É escandaloso, no entanto, constatar que o PT e o PCdoB desejam o mesmo. Os dois jovens podem até ter acendido o rojão, mas a culpa política é de quem nega os direitos do povo todos os dias.

Dilma, Cabral, Paes e demais governantes...

Quem não quer alvoroço no poleiro, não deixa faltar nada no galinheiro.

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